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O Cortejo da Enganação

Inspirado na estrutura do maracatu, este texto escancara as camadas do ano eleitoral como um cortejo performático, onde o candidato é rei, o povo é plateia, e a esperança é apenas figurino. Um desfile de promessas ritmadas por marketing e contratos, que termina em silêncio — e barro.
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atualizado há

2 dias atrás
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Eu estava ali quando começou. Sempre estou.

Primeiro, é o som que me chama. Uma batida surda, surgindo do fundo da rua como trovão disciplinado. É a alfaia — couro que convoca. Depois, as cores: um estandarte reluzente, agitado com graça, quase um aviso — “prepare-se, o espetáculo vai começar”.

De longe, parece festa. De perto… ah, de perto é teatro com roteiro decorado.

Lá vem ele, o Candidato. No cortejo do maracatu, esse seria o Rei. Aqui, é tratado como ouro: precioso, raro, indispensável. Brilha mais do que o necessário, sorri além do possível. Anda firme, como quem pisa no chão — embora flutue sobre ele. A multidão o olha como quem vê milagre. E talvez, por instantes, ele mesmo acredite que é. Mas não é fé. É marketing.

O figurino foi desenhado a dedo para seduzir até a senhora que não tem luz em casa, mas tem esperança.

Atrás dele, discretos e operantes, vêm os sombrais. No maracatu, são os guardiões da corte. Aqui, são os comissionados — seguram guarda-sóis e cargos. Sorriem e balançam a cabeça mesmo sem entender o discurso. Não por convicção, mas por contrato. Se a sombra some, o prestígio evapora. Ninguém ali quer perder o contracheque.

Logo após, o cortejo cresce em pompa. Duques, embaixadores, condessas da moral flexível. Os nobres do sistema. Seus nomes ecoam nos microfones de comícios e nos processos da Justiça Eleitoral. Alguns herdaram o cargo do pai. Ou do avô. Como no maracatu, a realeza política passa de geração em geração. Uma linhagem de mandatos, onde sobrenome vale mais do que projeto.

No meio da rua, balançando com dignidade, vem ele: o estandarte. Letras douradas bordadas em pano nobre: EDUCAÇÃO. SAÚDE. SEGURANÇA. A multidão lê com olhos úmidos. Os fotógrafos fazem questão de enquadrá-lo. O pano tremula com ritmo, sempre visível, sempre promissor. Mas sei: esse estandarte será dobrado logo depois da apuração dos votos e guardado numa gaveta — junto com os planos de governo.

A percussão mantém o cortejo vivo. No maracatu, ela embala o corpo e a alma. No ano eleitoral, é o marketing quem dita o compasso. Alfaías, agogôs, abês — tudo soa como novidade, mas é repetição. O batuque serve para distrair. A música não pode parar. Porque, se parar, o povo pode pensar. Reagir. Cansar.

O som cobre as vozes que questionam. O ritmo é urgente, mas sem direção.

E atrás de tudo, fechando a rota, está o povo. A multidão que vibra, ri, e aplaude como quem ainda deseja acreditar. Vi crianças encantadas com as cores, senhores desconfiados do brilho. Vi uma senhora aplaudindo com força — talvez aplaudindo sua própria esperança.

Mas vi também o que ninguém vê na dispersão: as mesmas pessoas voltando para as mesmas casas. Rua de barro, esgoto a céu aberto, mosquito batendo na testa. O cortejo se desfaz, o som cessa, o pano some — e o mundo volta a ser o mesmo.

Aliás, não o mesmo. Um pouco mais cínico, talvez.

Vi isso no Ceará, em Alagoas, na Paraíba. Vi palanques erguidos por herdeiros de oligarquias que se dizem renovação. Vi os currais reformulados para caber no digital. Vi discursos de mudança escritos por marqueteiros que jamais pisaram num bairro periférico. E vi o povo, sempre o povo, chamado de protagonista — só quando precisava entregar o voto.

Mas eu escuto a alfaia. Ela ainda bate. Ela marca o fim do desfile. Um último baque forte. Apoteótico. O povo vibra. E logo depois… silêncio.

Foi aí que pensei: E se alguém errar o compasso? Se um batuqueiro — um só — decidir marcar um ritmo diferente? Quebrar o andamento? Desalinhar a coreografia perfeita?

Talvez seja preciso uma missão. Não daquelas prometidas em vídeo de campanha, mas uma real. Uma que venha de dentro ou de fora, mas que tenha coragem. Uma missão que não se sujeite ao desfile, que não precise do estandarte para anunciar suas intenções. Que saiba que tradição não é obrigação. Que entenda que a música pode mudar.

Sim, talvez esse cortejo precise de dissonância. Precise de alguém que veja tudo — e, ainda assim, se recuse a dançar no mesmo passo. Porque, no silêncio desafinado do batuque… quem sabe, alguém desperte.

Uma pequena pausa, um ruído fora do esperado — carregando não a promessa de ordem, mas a esperança de um novo compasso.

E eu, que sempre estou ali, esperei.Quem sabe no próximo cortejo, alguém finalmente toque diferente.

Sobre o autor
Foto de Ewelin Mello

Ewelin Mello

Sou estudante de jornalismo, técnica em publicidade, escrevo crônicas e encontro Graça nos momentos ordinários.
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