Em tempos de colapso climático, avanço do autoritarismo e crise do capitalismo global, poucos intelectuais arriscam olhar o futuro com otimismo. Mas Francis Fukuyama, autor de “O Fim da História” e o “Último Homem”, ousa remar contra a maré. Em recente participação no podcast Doomscroll, apresentado pelo artista e pesquisador Joshua Citarella, o pensador americano reaparece com uma perspectiva surpreendente: estamos entrando em uma era de abundância tecnológica, e a democracia liberal ainda é a melhor estrutura para governá-la — se souber se reinventar.
A entrevista, que já repercute intensamente em redes sociais e fóruns acadêmicos, oferece uma leitura atualizada de Fukuyama sobre os impasses da ordem liberal e os efeitos da globalização. Com sua habitual clareza, ele reconhece os erros do projeto neoliberal, admite o enfraquecimento das democracias e propõe um novo horizonte: usar a tecnologia para redistribuir riqueza, reduzir desigualdades e repactuar o contrato social.
“A escassez não é mais o motor inevitável da história. O problema agora é político: quem controla a abundância?”, questiona Fukuyama durante a conversa.
Essa guinada de pensamento sinaliza um deslocamento importante. O autor, que durante os anos 1990 e 2000 foi visto como um defensor da globalização liberal, hoje reconhece que os mercados desregulados e as instituições multilaterais falharam em conter o autoritarismo e em proteger as classes trabalhadoras. “O neoliberalismo se tornou uma ideologia dogmática. Precisamos recuperar o espírito do liberalismo clássico: pluralismo, bem-estar e responsabilidade pública”, afirma.
Ao abordar o papel das Big Techs, Fukuyama destaca que a revolução digital exige novas formas de regulação democrática, evitando tanto o monopólio privado quanto o controle estatal autoritário. “É preciso um novo pacto político para essa era digital. A globalização não acabou, mas precisa ser corrigida”, pontua.

Joshua Citarella, conhecido por suas investigações sobre juventudes radicais online, conduz a entrevista de forma provocativa e bem-humorada. Em dado momento, questiona se a crença no progresso tecnológico não seria apenas uma “nova utopia liberal”, ao que Fukuyama responde com uma franqueza que destoa do seu estilo habitual: “Talvez seja. Mas é melhor do que o niilismo que domina parte da esquerda contemporânea”.
O vídeo também aborda a ascensão de regimes iliberais, a crise de confiança nas democracias ocidentais e o papel das redes sociais na erosão do consenso público. Fukuyama afirma que a democracia liberal ainda é o modelo mais resiliente, mas admite que ela precisa se reinventar para sobreviver ao século XXI.
Nas redes, a entrevista foi recebida como um “choque de lucidez”. Comentários exaltam a combinação rara entre erudição filosófica e pragmatismo político. “Francis está baseado”, ironiza um usuário do Reddit, enquanto outro escreve: “É a conversa que deveríamos estar tendo em todos os parlamentos do mundo.”
Para além da polêmica, o vídeo marca o retorno de Fukuyama como referência intelectual relevante para um mundo que parece viver entre distopias e promessas tecnológicas. Seja você um entusiasta da teoria política ou um cético do futuro, vale assistir com atenção.
Reflexão: O liberal arrependido?
A fala de Fukuyama marca, para muitos, a maturação crítica de uma figura que foi símbolo do otimismo neoliberal dos anos 90. A crença cega no “mercado autorregulador” e na integração econômica como sinônimo de progresso cede lugar agora a uma visão mais realista — e, paradoxalmente, mais esperançosa. Ele parece abandonar o fetiche da globalização por si só e propõe um liberalismo alternativo, atento às novas tecnologias, às identidades e à justiça distributiva.
Essa virada dialoga com outros movimentos intelectuais contemporâneos que tentam salvar o liberalismo das ruínas do próprio sucesso. Fukuyama não é mais o teórico do “fim da história” — é agora um arquiteto do possível, tentando reconstruir pontes entre tecnologia, democracia e bem comum.
Se sua nova aposta é viável, ainda é cedo para dizer. Mas em um mundo saturado de cinismo, a tentativa de pensar um futuro com mais justiça — mesmo partindo de um neoliberal — já é, por si só, um gesto radical.