Nasci em um mundo que, embora não perfeito, ao menos acreditava na perfeição. Um mundo onde o futuro ainda possuía um rosto — jovem, brilhante e esperançoso. Hoje, despeço-me desse velho mundo com a mesma tristeza com que se enterra um amigo de infância: daqueles com quem já não se conversava há anos, mas cuja lembrança ainda habitava os recantos mais suaves da memória.
No início do século XX, os homens partiram para a guerra com flores nos fuzis e hinos nos lábios. Cantavam como se os obuses fossem sinos de uma nova era. Pobres diabos. Eram herdeiros de um século que prometera tudo: progresso, ciência, liberdade, locomotivas velozes e banheiras com água quente. Acreditavam ter vencido a barbárie — mas bastou um atentado em Sarajevo para que toda essa fé desmoronasse como um castelo vienense de cartas. O otimismo virou trincheira. A razão, gás mostarda. A civilização — tão polida, tão ordenada — revelou sua casca fina e podre.
Mas ao menos havia ignorância. Os homens de 1914 não sabiam o que os esperava. Nós, sim. Temos arquivos, filmes, bibliotecas, cursos online. Sabemos como termina a história. E mesmo assim, marchamos — não para frente, como queriam os utopistas — mas em círculos, como um cão faminto perseguindo o próprio rabo, convencido de que é um coelho.
Hoje, as guerras não são mais anunciadas por cavalgadas ou telegramas selados com cera, mas por tweets. Não mais os gritos de um arquiduque tombando nos braços da esposa, mas hashtags estratégicas, vídeos verticais com filtros e comentários ao vivo. Sim, as bombas continuam a cair — e ainda matam. Mas algo mudou no modo como olhamos para a tragédia. O grotesco não está apenas na guerra. Está na forma como a vestimos com estética.
Um míssil é lançado e, segundos depois, há vídeos com trilha sonora dramática, legendas em fonte clean e emojis de foguinho no canto. A morte virou conteúdo. A dor virou branding. A guerra, um espetáculo ao alcance do polegar — e talvez isso seja, sim, mais grotesco do que os velhos campos de batalha: não por ser mais cruel, mas por ser mais indiferente.
Sim, reconheço: o passado não foi um paraíso perdido. Ele foi racista, colonialista, desigual, e permeado por horrores que nenhum filtro de nostalgia pode esconder. Mas havia nele um senso de solenidade, mesmo na dor. Havia silêncio nos velórios, luto nos jornais, vergonha nas derrotas. Hoje, o sangue em Donetsk ou em Gaza dura 72 horas nos trending topics, seguido por um tutorial de maquiagem, uma polêmica sobre a cor de uma embalagem e um novo boicote a alguma marca que vende chocolate em Israel.
A banalização não apaga a dor real. Mas transforma seu significado. Marchamos não mais por causas, mas por campanhas. Não por princípios, mas por curtidas. A ideologia virou estética de perfil. A moral, uma moldura temporária. E quando a morte vira meme, o que resta da civilização?
Se no mundo de ontem, como escreveu Zweig, as ideias ainda valiam alguma coisa, hoje vale mais a pose. Antes, um homem precisava morrer por uma pátria. Hoje, basta postar com a bandeira da vez. E quando o sangue derramado tem o mesmo ciclo de engajamento de um campeonato de futebol, algo essencial se perdeu.
Não idealizo o passado. Mas é preciso reconhecer que seus vícios conviviam com virtudes sólidas: honra, sobriedade, dever, hierarquia. Hoje, o moralismo histérico convive com a ignorância orgulhosa, e o que chamamos de virtude não passa, muitas vezes, de indignação performática. Há ativismos vazios, campanhas de boicote a supermercados e protestos por causas que seus próprios defensores não entendem. Gritam por liberdade com um iPhone na mão e um QR code do Pix na outra.
Eis o novo século: um teatro de absurdos onde se combatem tiranias com dancinhas no TikTok e se esperam tratados de paz de líderes que mal conseguem manter a compostura numa reunião do G7. Se o século XX começou com uma guerra que acabou com quatro impérios, o XXI talvez termine com uma guerra que começou com quatro cliques. Os impérios já ruíram — só restou o culto ao eu. À selfie. À celebridade vazia.
É uma tirania silenciosa, porém mais sólida que o Czar ou o Kaiser jamais foram. Como previu Huxley em Admirável Mundo Novo, não seríamos dominados pela dor, mas pelo prazer. Não por censores, mas por distrações. Não por açoites, mas por dopamina. E talvez, nesse ponto, sua previsão tenha sido ainda mais sombria que a de Orwell.
Vivemos, como sugeriu Robert Musil, sob o império de uma humanidade sem qualidades: indivíduos educados, informados, conectados — mas desprovidos de substância. Capazes de tudo, exceto de saber por que o fazem. O homem sem qualidades, outrora uma figura trágica da modernidade tardia, tornou-se o arquétipo da geração digital. Ciente de todas as causas, incapaz de lutar por qualquer uma.
Chesterton, se vivesse hoje, não escreveria sobre o homem que sabia demais, mas sobre o homem que sabe tudo e ainda assim é idiota. Um homem que, tendo acesso ao saber do mundo inteiro, prefere ver vídeos sobre reptilianos no Congresso ou coreografias interpretativas sobre a Faixa de Gaza. A idiotice deixou de ser ignorância — tornou-se escolha, convicção, até identidade.
E, no entanto, aqui estou eu. Escrevendo uma despedida. Não um apelo, nem uma revolta. Apenas uma despedida — amarga, como se despede de um lar em ruínas, mas também com certo sarcasmo, pois talvez este mundo que hoje enterramos nunca tenha existido. Talvez tenha sido apenas um intervalo ilusório entre duas tempestades. E nós, ingênuos, acreditamos no intervalo.
Agora, restam-nos as ruínas — belíssimas, como todas as ruínas são —, mas ocas. As catedrais de valores viraram centros culturais com exposições interativas sobre o fim da história. A tradição, atração turística. O heroísmo, uma campanha de marketing. A fé, uma hashtag.
E mesmo assim, enquanto o velho mundo afunda com a solenidade de um navio em câmera lenta, há quem ainda dance no convés, fingindo que a orquestra não parou de tocar.
Eu? Eu me retiro. Não com raiva. Mas com um luto irônico. Como quem observa um palhaço caindo do picadeiro e, mesmo ferido, ainda tenta arrancar aplausos.
Adeus, velho mundo em que cresci. Que os próximos sobrevivam — ou, ao menos, saibam rir antes da próxima sirene.