Em terra de Kit Gay, ponderar o que é adequado (ou não) para os jovens virou tarefa de risco, e não me refiro só à escola. Incluo nesse debate a mídia, o núcleo familiar e, principalmente, o palco central dessa discussão: a sala de aula. O que me motiva aqui é um recente vídeo circulando pelo “X” de uma professora ensinando sobre educação sexual. Ela aparece trajada com uma camiseta preta da UFBA, calça jeans preta e tênis, segura um objeto — um simulador de pênis — em uma mão e uma camisinha na outra. Leva a camisinha à boca e, utilizando o simulador, realiza a demonstração de como supostamente se coloca o preservativo com a boca. Adicional à cena, temos uma classe eufórica, com risadas e comentários como “ela engole tudo” e aplausos ao fim da demonstração.
Realidade Brasileira: Dados Alarmantes sobre Iniciação Sexual Precoce
E é nesse ponto que se instala o questionamento: está correto isso? A resposta, como quase tudo nesse país chamado Brasil, não cabe em um sim ou não. Comecemos, então, com uma contextualização da realidade. Segundo dados da Pesquisa Nacional de Saúde Escolar (PeNSE) de 2019, dentre os adolescentes que já iniciaram sua vida sexual, 36,6% o fizeram antes dos 13 anos, sendo a média de idade 13,4 anos para meninos e 14,2 para meninas. Comparativamente, a OMS (2009) aponta que apenas 22% dos adolescentes no mundo, aos 15 anos, já iniciaram relações — uma média muito abaixo da brasileira.
Apenas com esses dados — e eu trarei mais no desenvolver dessa conversa — podemos enxergar os erros da tal demonstração da professora acima citada. A educação sexual tem como cerne a proteção do desenvolvimento infantojuvenil. É comprovado — você goste ou não goste — que países com educação sexual estruturada têm menores taxas de iniciação sexual precoce e gravidez na adolescência, por exemplo. Visto que, aparentemente, ela leciona para uma sala de ensino médio, compreendendo jovens entre 15 e 18 anos, a demonstração, como exibida no vídeo, se adequa mais a um caráter lúdico do que realmente pedagógico. Afinal, são crianças “adultas” que, em sua maioria, já têm atividade sexual rotineira. A performance da docente em questão ultrapassa os limites do que se entende como instrução técnica — e adentra, sem a menor sutileza, o território da espetacularização. Afinal de contas, o objetivo pedagógico é transmitir o uso correto de um preservativo, algo que — vale lembrar — não exige habilidades acrobáticas. É exatamente aí que deixa de ser educação sexual — aquela que, no fim das contas, tem efeito protetivo e atrasador da sexualidade precoce — e vira o circo que é o Brasil e sua professora empoderada, que “engole tudo” e é, aparentemente, oriunda de uma Universidade Federal que deveria prepará-la e adequá-la para tal instrução.
O Vazio Legal: Ausência de um Programa Nacional de Educação Sexual
Falando em preparação, nosso país — com esses números alarmantes de crianças fazendo sexo — não possui um programa nacional robusto, contínuo e obrigatório de educação sexual. O que existe é uma abordagem transversal e dispersa, prevista na Base Nacional Comum Curricular (BNCC), especialmente nos componentes de Ciências (Ensino Fundamental) e Ciências Humanas. Não há uma diretriz específica sobre quando, como e com que metodologia esses conteúdos devem ser tratados. Isso fica a critério das redes estaduais, municipais e das próprias escolas. Na prática, isso gera uma heterogeneidade enorme: há escolas que trabalham o tema de forma responsável, outras que ignoram, e outras que abordam de maneira inadequada — seja por excesso (exposição imprópria) ou omissão (silenciamento).
E são justamente as inadequações que dão margem para um debate tosco sobre um tema tão importante para a saúde, economia e educação. Enquanto aqui seguimos discutindo se é lícito falar a palavra “pênis” numa sala de aula, ou se a educação sexual é uma conspiração comunista disfarçada de prevenção, lá fora a história é bem diferente. Países minimamente civilizados entenderam, há décadas, que educação sexual não é pauta de costumes — é política pública de saúde, proteção e desenvolvimento. E fizeram disso política de Estado, não de governo, nem de lacração pedagógica em rede social.
Na Suécia, por exemplo, educação sexual é obrigatória desde 1955. Começa nas séries iniciais e segue até o ensino médio, com conteúdos que crescem junto com o aluno. E, antes que algum gênio sugira que ensinam criança a transar, já deixo claro: aos quatro, cinco, seis anos falam sobre corpo, autocuidado, afeto, consentimento e fronteiras pessoais. Só depois é que vêm os temas biológicos, contraceptivos, ISTs.
A Holanda, que ostenta os menores índices de gravidez na adolescência da Europa, implementa um programa ainda mais robusto. Começa aos quatro anos, com discussões absolutamente adequadas à idade: “meu corpo é meu”, “quem pode ou não pode tocar em mim”, “o que é carinho, o que é amor”. Aos dez ou doze, entram temas como respeito, relacionamentos, diversidade e, só então, prevenção, contracepção e saúde reprodutiva. O resultado? Gravidez na adolescência praticamente inexistente, taxas baixíssimas de ISTs.
Na França, educação sexual é obrigatória desde os anos 1970, com três intervenções pedagógicas anuais, no mínimo, por lei. A Alemanha, idem. A fórmula é simples: informação adequada + progressão metodológica + respeito ao desenvolvimento biopsicossocial da criança e do adolescente = autonomia, proteção e saúde pública funcionando.
O Cenário Acadêmico: Pesquisas Revelam a Improvisação nas Escolas
E aqui, voltamos ao nosso Brasil varonil, onde a educação sexual ou não existe, ou vira espetáculo grotesco, como bem ilustra a cena da professora performando no vídeo citado. E não, a culpa não é só dela — embora caiba crítica, sim. O erro dela tem CPF, mas tem também um CNPJ chamado Estado Brasileiro, que há décadas empurra o tema com a barriga, enquanto finge que “incluir de forma transversal” na BNCC resolve alguma coisa.
Aliás, se você acha que essa falta de método, bom senso e decoro é exclusividade dessa docente, permita-me a gentileza de te apresentar a literatura científica brasileira sobre o tema.
A começar pela revisão sistemática de Fontana Furlanetto et al. (2018), que analisou 24 estudos de campo entre 2010 e 2016, mostrando que a educação sexual nas escolas brasileiras é, na melhor das hipóteses, improvisada. Os autores são cirúrgicos: “A prática revela distanciamento entre a proposta dos Parâmetros Curriculares Nacionais e o que se efetiva nas salas de aula. A carência na formação dos professores é apontada como um dos principais entraves para a efetividade das ações.”
O problema não é novo, nem discreto. Segundo Quirino & Rocha (2012), os próprios docentes relatam que falar sobre sexualidade “é atravessar um campo minado de medos, crenças e inseguranças”, e que, na ausência de formação específica, “recorrem ao improviso, à reprodução do senso comum ou à completa omissão.”
Se você acha pouco, segura essa: Rocha et al. (2005) já denunciavam, há quase vinte anos, que o discurso escolar sobre sexualidade é formado mais pelo “não dito” do que pelo dito. E que, quando dito, “ou recai na abordagem biológica, centrada nos riscos, ou escorrega na espetacularização, transformando o corpo em objeto de controle, piada ou constrangimento.”
Onde a Educação Sexual Vira Espetáculo: A Confluência de Fatores
Se você olhou para o vídeo da professora e pensou que aquilo era uma aberração isolada, sinto lhe informar que aquilo é exatamente o retrato da ausência de política pública séria, somada à ausência de formação docente específica. Não é um ponto fora da curva. É a curva inteira.
Soma-se o despreparo do corpo docente, uma cultura musical de Anitta — com seu novo funk mais tocado “São Paulo” —, Zé Felipe e Oruam — com “Garota, quero você só pra mim” —, a uma juventude precoce sexualmente, que já sabe o que é sexo muito antes de conseguir interpretar o que lê ou mesmo realizar equações matemáticas. Nos deparamos com espetáculos do horror por todo o país: da omissão, da perpetuação de ciclos de violência sexual e, o pior, da perda da juventude.